RECURSO EXTRAORDINÁRIO 565.089 SÃO PAULO
V O T O
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – Na interposição deste recurso, observaram-se os pressupostos gerais de recorribilidade. Os documentos de folhas 19, 254, 255 e 263 evidenciam a regularidade da representação processual e do preparo. Quanto à oportunidade, a notícia do acórdão recorrido foi veiculada no Diário de 23 de maio de 2007, quarta-feira (folha 212), ocorrendo a manifestação do inconformismo em 6 de junho imediato, quarta-feira (folha 214), no prazo assinalado em lei. Conheço.
1. EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL E SUPERAÇÃO JUDICIAL DAS OMISSÕES LEGISLATIVAS.
Inicialmente, algumas premissas hão de ficar assentadas. Registro que, desde cedo no Supremo, defendi – e assim o faço até os dias atuais – a plena efetividade do texto da Carta Federal. No campo da omissão inconstitucional, menciono o voto proferido em 6 de fevereiro de 1991, no julgamento do Mandado de Injunção nº 232/DF, da relatoria do Ministro Moreira Alves. Naquela ocasião, sustentei não apenas o cabimento da ação, mas a plena possibilidade de pronunciamento de caráter concreto, no sentido de conceder ao impetrante aquilo que realmente postulara: a fixação de parâmetros necessários à fruição de um direito assegurado na Carta da República.
Assim procedi por estar convicto de que a função precípua do Tribunal Constitucional é a guarda da Lei Maior, cujo artigo 102, cabeça, confirma, textualmente, o que asseverei. Incumbe ao Supremo zelar para que o principal documento normativo do Estado não seja esvaziado por conduta omissiva ou comissiva dos agentes públicos, em especial dos agentes políticos e órgãos de estatura constitucional, como é o caso dos ocupantes dos Poderes Executivo e Legislativo. Na quadra vivida, encontra-se superado, finalmente, o ciclo de atraso que perpassou o constitucionalismo brasileiro, marcado por Constituições semânticas – na famosa classificação ontológica das constituições elaborada por Karl Loewenstein (Teoría de la Constitución, 1976, p. 170) –, que eram inobservadas pelo poder constituído sem maiores reservas.
Exatamente para evitar essa situação, e ciente dos percalços experimentados em passado não tão distante, o Constituinte lançou mão de diversos instrumentos processuais, dos quais cito a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, tomada de empréstimo ao artigo 283 da Carta portuguesa de 1976, e o mandado de injunção, para superar a omissão. Deu os meios para que se possa alcançar o fim, qual seja, a efetividade – ou eficácia social, para utilizar a expressão de José Afonso da Silva (A aplicabilidade das normas constitucionais, 2008, p.65) – das normas jurídicas presentes na Lei Maior. O constitucionalismo entendido como expressão de princípios de natureza política, dirigido unicamente ao próprio Estado e aos agentes públicos, incapaz de gerar direitos subjetivos, não é mais compatível com as expectativas sociais depositadas no texto constitucional e na jurisdição que lhe guarda.
Em resumo, a inoperância da Carta Federal é situação a ser combatida, presente o apelo do cidadão em tal sentido e a prova da mora injustificável do legislador ou do chefe do Poder Executivo. Não é admissível transformar a Lei Maior em um “sino sem badalo”, como disse o professor José Carlos Barbosa Moreira a respeito da interpretação conferida pelo Supremo ao mandado de injunção, assentada precisamente no mencionado Mandado de Injunção nº 282. Não refletindo a prática constitucional do Supremo a “vontade de Constituição” aludida por Konrad Hesse (A força normativa da Constituição, 1991, p. 19), tem-se o prejuízo à força normativa do texto constitucional e a perda de legitimidade do Poder Judiciário como um todo.
Observem haver este Tribunal, no julgamento do Mandado de Injunção nº 283/DF, da relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, dado um passo adiante quanto à superação das omissões inconstitucionais, ao reconhecer a possibilidade de obtenção de indenização por perdas e danos em razão da mora legislativa na regulamentação do § 3º do artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a ser fixada em liquidação. Avançou-se mais na apreciação do Mandado de Injunção nº 712/PA, da relatoria do Ministro Eros Grau, e do Mandado de Injunção nº 721/DF, de minha relatoria, nos quais o Supremo retirou da inoperância o inciso VIII do artigo 7º e o § 4º do artigo 40 da Lei Maior, determinando a aplicação analógica, respectivamente, das Leis nº 7.783/89 e 8.213/91. A virada jurisprudencial na interpretação dos limites do mandado de injunção deve ser vista sob prisma mais largo. Representa o inconformismo do Tribunal com a omissão inconstitucional e a criação de soluções para o problema que superem o singelo – e tantas vezes inócuo – apelo ao legislador. É chegado o momento de superar a conhecida “síndrome da inefetividade das normas constitucionais”.
Em suma, conforme ressaltado pelo Ministro Celso de Mello no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.458-7/DF, há de buscar-se a concretude, a eficácia maior, dos ditames constitucionais. Com a propriedade decorrente da formação profissional e humanística possuída, Sua Excelência fez ver:
A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.
(...)
É preciso proclamar que as Constituições consubstanciam ordens normativas cuja eficácia, autoridade e valor não podem ser afetados ou inibidos pela voluntária inação ou por ação insuficiente das instituições estatais. Não se pode tolerar que os órgãos do Poder Público, descumprindo, por inércia e omissão, o dever de emanação normativa que lhes foi imposto, infrinjam, com esse comportamento negativo, a própria autoridade da Constituição e efetuem, em conseqüência, o conteúdo eficacial dos preceitos que compõem a estrutura normativa da Lei Maior.
Então, com base nesse entendimento, passo ao exame da matéria.
2. GARANTIA DO EQUILÍBRIO CONSTITUCIONAL ENTRE A REMUNERAÇÃO DO SERVIDOR PÚBLICO E OS SERVIÇOS PRESTADOS.
Na espécie, os recorrentes, servidores públicos civis do Estado de São Paulo, postularam indenização pela falta da revisão geral anual prevista no artigo 37, inciso X, da Lei Maior, com a redação que lhe foi atribuída pela Emenda Constitucional nº 19/98. Narraram a reiterada inação do Governador do Estado no tocante ao encaminhamento de projeto de lei tendente a promover a revisão constitucionalmente exigida, resultando em grave redução remuneratória com o passar dos anos.
Pois bem, a relação jurídica Estado-servidor público é comutativa e sinalagmática. Em síntese, existem direitos e obrigações recíprocos considerado o que assentado não só quando da arregimentação da mão de obra como também na legislação de regência. Há uma relação de equivalência estabelecida entre os serviços prestados e aquilo que lhe é devido a título remuneratório. Essa equação vem assegurada nos incisos X e XV do artigo 37 da Carta de 1988, os quais preveem a obrigação de revisão geral e a irredutibilidade dos vencimentos e subsídios dos ocupantes de cargos e empregos públicos.
Percebam o alcance das normas: resguardar os vencimentos dos efeitos perversos da inflação. E por que assim o é? Se verificarmos a justificativa enviada pelo Dr. Clóvis de Barros Carvalho, então Chefe da Casa Civil, junto com a proposta que deu origem à Emenda Constitucional nº 19, veremos que uma das facetas da denominada reforma administrativa foi precisamente promover a modificação de paradigma relativamente ao tratamento do servidor público. Esclareceu Sua Excelência os seguintes objetivos da proposta: “recuperar o respeito e a imagem do servidor público perante a sociedade; estimular o desenvolvimento profissional dos servidores e; por fim, melhorar as condições de trabalho”. Vê-se, então, que a reforma administrativa veio para melhorar as condições do servidor. Esse é o parâmetro a nortear a interpretação do artigo 37, inciso X, da Constituição Federal de 1988.
O servidor público, em sentido amplo, não tem o mesmo poder de barganha dos trabalhadores em geral. A greve no serviço público até hoje não foi regulamentada via legislativa, tendo sido objeto da integração mediante mandado de injunção. Nas relações jurídico-privadas, as greves têm por efeito a suspensão do contrato de trabalho, presente o artigo 7º da Lei nº 7.783/89, causando prejuízos às duas partes envolvidas na relação de emprego: os trabalhadores acabam privados da remuneração e o empregador fica sem a produção relativa à paralisação. É da natureza da suspensão a ausência do trabalho e do salário, cabendo aos interessados promover a composição, vedada a dispensa arbitrária – parágrafo único do artigo 7º da Lei nº 7.783/89.
O servidor público, integrando o gênero burocracia, ao contrário, não causa prejuízo ao tomador dos serviços ao deixar de prestar o serviço, ficando reduzida a efetividade da greve enquanto instrumento de negociação. Ressalvado o prejuízo indireto, político-eleitoral, o verdadeiro prejudicado com a paralisação da máquina administrativa é o administrado. Daí a importância da garantia constitucional. Essa se revela na leitura teleológica que faço do artigo 37, inciso X, da Constituição, do qual extraio o direito à manutenção dos patamares remuneratórios.
3. DISTINÇÃO ENTRE AUMENTO E REAJUSTE. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES PÚBLICOS.
Atentem para a distinção entre aumento e reajuste. O Direito, tanto o substancial quanto o instrumental, é orgânico e dinâmico, descabendo confundir institutos que têm sentido próprio. Na espécie, não se trata de fixação ou aumento de remuneração – estes, sim, a depender de lei, na dicção do inciso X do artigo 37 da Carta da República. Versa-se o reajuste voltado a afastar os nefastos efeitos da inflação. Objetiva-se a necessária manutenção do poder aquisitivo da remuneração, expungindo-se o desequilíbrio do ajuste no que deságua em vantagem indevida para o Poder Público, a aproximar-se, presente a força que lhe é própria, do fascismo. Não se pode adotar entendimento que implique supremacia absoluta do Estado, em conflito com o regime democrático e republicano.
Consoante a jurisprudência tradicional do Supremo, mostra-se inviável o aumento remuneratório de servidor público por decisão judicial, porquanto o Poder Judiciário não possui função legislativa – Verbete nº 339 da Súmula: “não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia”. A visão é correta. Não há espaço para a concessão de aumento pela via judicial, mas os recorrentes não buscam isso. Buscam a indenização pelo descumprimento de um dever jurídico, consistente no inadimplemento de majoração remuneratória para resguardo da equação entre remuneração e trabalho.
O Supremo já assentou que “a correção monetária não se constitui em um plus, não é uma penalidade, mas mera reposição do valor real da moeda corroída pela inflação” – Agravo Regimental na Ação Cível Originária nº 404, da relatoria do Ministro Maurício Corrêa. Com idêntico fundamento, há jurisprudência no sentido da desnecessidade do pedido expresso relativo à correção monetária, mesmo inexistindo dispositivo semelhante ao artigo 293 do Código de Processo Civil, que trata especificamente dos juros. A propósito, cito o que decidido no Recurso Especial nº 1.112.524/DF, da relatoria do Ministro Luiz Fux, à época no Superior Tribunal de Justiça: “A correção monetária plena é mecanismo mediante o qual se empreende a recomposição da efetiva desvalorização da moeda, com o escopo de se preservar o poder aquisitivo original, sendo certo que independe de pedido expresso da parte interessada, não constituindo um plus que se acrescenta ao crédito, mas um minus que se evita”.
Por quê? Porque, como já dito, correção monetária não é acréscimo, não é ganho, é mera reposição com o escopo de preservar o valor. Surge a percepção de ser a correção monetária uma necessidade para manter o objeto da relação jurídica, e não vantagem para aquele que pretende obtê-la.
Ainda sobre a matéria, noto que o direito ao reajuste da prestação devida pela Administração Pública é componente essencial do sistema de contratação pública, como tem amplamente reconhecido a doutrina. Observem a denominada intangibilidade da equação econômico-financeira dos contratos administrativos, a revelar, no caso de prestação de serviços ou de entrega de bens, o direito ao reajuste da contrapartida estatal sempre que necessário ao equilíbrio do ajuste. A lógica mostra-se rigorosamente a mesma, considerada a parte final do inciso XXI do artigo 37 da Carta da República, no ponto em que mencionada a manutenção das condições efetivas da proposta apresentada no certame licitatório, extraindo-se o direito subjetivo aos reajustes, repactuações e revisões.
Quanto ao tema, assevera Gustavo Binembojm: “O princípio do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos é usualmente conceituado como o dever de preservação da relação de equivalência que se estabelece, no momento da apresentação da proposta do licitante vencedor, entre os encargos assumidos pelo contratado e as retribuições a ele devidas” (Temas de direito administrativo e constitucional,
2008, p. 388). A necessária observância à equação econômico-financeira do contrato está presente na jurisprudência do Supremo, como dão conta os acórdãos proferidos na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.733/ES, da relatoria do Ministro Eros Grau, e na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.599, da relatoria do Ministro Moreira Alves.
Pergunto: e não se estaria aí a depender de lei também? De certo modo, sim. Todo gasto público pressupõe autorização legal para ocorrer licitamente. Hipoteticamente, pode surgir o direito à revisão contratual sem que haja orçamento para efetuar o pagamento correlato. Nesse caso, o que fazer? Não existe maior complexidade: o contratado busca a tutela jurisdicional, valendo-se de ação de cobrança. Se julgada procedente, há a inscrição do título executivo em precatório, presente o artigo 100 da Carta Federal, e o pagamento segundo a inclusão dos débitos no orçamento público. Penso que a mesma solução deve ser aplicada à situação em análise.
No mais, atentem para a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais. A garantia é de manutenção do valor da remuneração, e não da correspondente expressão monetária. Descabe confundir, como alerta Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “valor” da remuneração com a equivalente “expressão pecuniária”. O acréscimo remuneratório em percentual inferior à inflação do período representa inequívoca diminuição do valor da remuneração, em desacordo com a garantia constitucional. O autor expressa com singular clareza:
Entendido o dispositivo, conjuntamente com a regra do art. 37, X, que determina a “revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos e do subsídio”, impõe-se concluir que o legislador constitucional assegurou a irredutibilidade do valor dos vencimentos e não a de sua expressão monetária, pois, se assim não fosse, estaria consagrada, paradoxalmente, com a garantia constitucional, uma perversa opção política para reduzi-los por simples omissão, quando e no quanto fosse desejável à Administração, bastando, para tanto, que os Chefes do Poder Executivo se abstivessem de enviar mensagem de reajustamento ao Legislativo para a correção das perdas inflacionárias da moeda (Curso de direito administrativo, 2009, pp. 336 e 337).
4. DA DOUTRINA CONSEQUENCIALISTA NA INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO.
Considerados os precedentes do Tribunal no tocante à evolução do tratamento da omissão inconstitucional e o contexto jurídico mencionado, não me parece assistir razão à tese que rejeita qualquer eficácia ao artigo 37, inciso X, da Lei Maior. Somente argumentos de índole pragmática são capazes de revelar solução diferente. A ausência de lei pode induzir à crença de que a opção política de esvaziar a norma constitucional decorre das consequências sistêmicas que a implementação dela causariam? Ou, em outras palavras: o impacto financeiro do preceito constitucional sobre as contas públicas justifica a inobservância do preceito? A resposta é desenganadamente negativa.
O pragmatismo jurídico leva a considerar as consequências práticas da decisão judicial, lançando o magistrado em posição que não lhe é confortável. Ao reconhecer-lhe a condição de agente político no sentido estrito do termo, retira o juiz do hábitat natural e o põe na função de legislador, para que tome a decisão com fundamento na antecipação hipotética de resultados. Margarida Maria Lacombe Camargo afirma: “o juiz pragmatista está mais comprometido assim em atuar politicamente do que extrair decisões dedutivamente das normas jurídicas. Ele é orientado empírica e politicamente a partir de dados apresentados por outras ciências, notadamente a economia” (in “Fundamentos teóricos do pragmatismo jurídico”, Revista de Direito do Estado nº 06, 2007, p. 208).
Exceção feita ao Ministro Barata Ribeiro, médico na origem, que integrou o Supremo por curtos onze meses, os juízes possuem formação estritamente jurídica. A eles não é dado fazer prognósticos econômicos ou sociais para que sirvam de fundamento decisório. Não incumbe ao Poder Judiciário analisar a conveniência dessa ou daquela norma, mas apenas assentar se determinada pretensão é ou não compatível com o ordenamento jurídico.
No mais, “a parte que tem a lei ao seu lado espera que lhe seja atribuído pelo tribunal o que por direito lhe cabe”, conforme pontua Karl Larenz (Metodologia da ciência do direito, 1997, p. 516). A prevalência das consequências sobre o direito legislado resulta na inversão da lógica jurídica.
Esclareço não preconizar, com isso, ignorar-se no processo a quadra vivida. Não perco de vista o horizonte social quando busco a solução dos problemas jurídicos com que me defronto. Aliás, qualquer interpretação jurídica parte da consideração de elementos fáticos, ainda que seja uma interpretação em abstrato, pois, mesmo em casos tais, o magistrado não deixa de formular a hipótese e alcançar conclusões com base na realidade conhecida. O que não posso aceitar é que, presente a obrigação jurídica sob todos os cânones interpretativos – extraída da literalidade, historicidade, sistematicidade e teleologia da Constituição –, simplesmente se deixe de reconhecê-la ante razões de índole pragmática.
Impõe-se o contorcionismo técnico para salvar as finanças públicas, mas este é o papel do Tribunal Constitucional? A resposta só pode ser negativa. O Supremo tornou esse enfoque claro ao apreciar casos envolvendo a colisão entre direitos fundamentais, que ficariam submetidos à ineficácia por argumentos de índole financeira. Faço referência a decisões que resultaram no deferimento de coquetéis para tratamento da Aids, direito à matrícula em creche, direito a tratamentos médicos e internação hospitalar – vejam, por exemplo, os acórdãos relativos ao Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 271.286-8/RS, ao Recurso Extraordinário nº 436.996-6/SP, ambos relatados pelo Ministro Celso de Mello, ao Recurso Extraordinário nº 226.835-6/RS, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão. Invariavelmente, este Tribunal tem assentado a plena eficácia da Carta, colocando em segundo plano considerações pragmáticas.
O Supremo não deve ser um filtro pragmático quanto a disposições constitucionais cuja eficácia depende de recursos para que seja concretamente observada. É de combater-se a rotulada “insinceridade normativa”, na expressão de Luís Roberto Barroso. Conforme o autor:
[...] não é incomum a existência formal e inútil de Constituições que invocam o que não está presente, afirmam o que não é verdade e prometem o que não será cumprido (...) Em certos casos, ela [a disposição constitucional] se apresenta desde o primeiro momento irrealizável. De outras vezes, o próprio poder constituído impede sua concretização. E, ainda, um preceito constitucional frustra-se em sua realização por obstáculos opostos por injunções de interesses de segmentos econômica e politicamente influentes (O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2006, p. 61).
Cabe aos poderes constituídos agir com responsabilidade, e não simplesmente jogar para o Supremo o ônus de impedir que as promessas políticas inconsequentes tornem-se realidades desastrosas. O Supremo não é o Ministério da Fazenda ou o Banco Central do Brasil. Não compete ao Tribunal fazer contas quando está em jogo o Direito, mais ainda quando se trata do direito constitucional.
5. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO PELA OMISSÃO INCONSTITUCIONAL.
Segundo San Tiago Dantas, o “catedrático-menino” da Nacional de Direito, as normas jurídicas podem ser consideradas sob três aspectos: a estrutura externa, ou invólucro, que normalmente é a lei; o conteúdo, que traduz, em geral, uma regra de cunho econômico, ético, político ou moral; e a estrutura interna. Relativamente a esse último ponto, esclarece o professor: “Quando se considera uma norma jurídica qualquer e se examina a sua estrutura interna, nela se descobrem sempre dois elementos: um é o comando; outro é a sanção”. E arremata: “O comando é aquilo que se deve fazer, a sanção é aquilo que acontece se assim não se fizesse. (...) A sanção é o mal de que se está ameaçado no caso de não se obedecer ao comando. Os dois elementos são, por conseguinte, inseparáveis” (Programa de direito civil, 1979, p. 79). Em outras palavras, não é próprio do Direito, e menos ainda do direito constitucional, a existência de normas jurídicas cujo descumprimento não produz qualquer consequência prática.
Forte nessas premissas, a cabeça do artigo 37 da Carta da República trouxe os princípios aos quais está submetida a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Mais do que isso, remeteu à observância dos incisos que se seguem. O inciso X prevê que a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do artigo 39, também da Constituição, somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, respeitada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada a revisão geral anual, sempre na mesma base e sem distinção de índices.
O quadro demonstra o desprezo do Executivo ao que garantido constitucionalmente aos servidores públicos quanto ao reajuste da remuneração de forma a repor o poder aquisitivo da moeda. Nas esferas federal, estadual e municipal, em verdadeiro círculo vicioso, os olhos são fechados à cláusula clara e precisa do inciso X do artigo 37 da Carta Federal, asseguradora da revisão geral anual da remuneração, sempre na mesma data e sem distinção de índices. A consequência é o achatamento incompatível com a própria relação jurídica mantida, decorrendo desse fenômeno a quebra de equação inicial e o enriquecimento sem causa por parte do Estado. Continua ele contando com a valia dos serviços que, paulatinamente, são remunerados de maneira a revelar decesso. Os servidores, ante a inércia verificada, percebem valores que, em razão da inflação e da ausência do afastamento dos nefastos efeitos, tal como imposto pela Constituição Federal, já não compram o que compravam anteriormente.
Iniludivelmente, trata-se de ato omissivo do Estado – e sou voz minoritária relativamente à autoaplicabilidade do preceito constitucional alusivo à revisão. Vejam, a propósito, o acórdão relativo ao Mandado de Segurança nº 22.439, da relatoria do Ministro Maurício Corrêa – a atrair a incidência do disposto no § 6º do mencionado artigo 37 da Lei Maior:
§ 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
A norma constitucional, evoluindo em relação a teorias passadas que consagravam a irresponsabilidade pública, previu a responsabilidade objetiva do Estado pelos atos praticados por agentes públicos. Notem que a responsabilização estatal pelos atos danosos causados aos particulares tornou-se um dos alicerces do Estado Democrático de Direito, não se cogitando, em tempos atuais, de intangibilidade dos atos do Poder Público, própria ao Estado absoluto.
No campo da omissão, haverá o dever de indenizar quando ficar concretamente demonstrado que, existindo a obrigação legal de agir e a possibilidade de evitar a lesão, ocorreu o fato danoso. Conforme ressaltado pelo pensador do Direito Celso Antônio Bandeira de Mello:
[...] se o Estado, devendo agir, por imposição legal, não agiu ou o fez deficientemente, comportando-se abaixo dos padrões legais que normalmente deveriam caracterizá-lo, responde por esta incúria, negligência ou deficiência, que traduzem um ilícito ensejador do dano não evitado quando, de direito, devia sê-lo. Também não o socorre eventual incúria em ajustar-se aos padrões devidos.
Reversamente, descabe responsabilizá-lo se, não obstante atuação compatível com as possibilidades de um serviço normalmente organizado e eficiente, não lhe foi possível impedir o evento danoso gerado por força (humana ou material) alheia.
[...]
É corretíssima, portanto, a posição sempre e de há muitos lustros sustentada pelo Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, segundo quem a responsabilidade do Estado é objetiva no caso de comportamento danoso comissivo e subjetiva no caso de comportamento omissivo”. (Curso de direito administrativo, 2006, pp. 968 e 970)
Volto ao caso submetido a julgamento. O que se tem é o desrespeito pelo Estado, solapando o direito do servidor público, de norma de envergadura maior a impor o reajuste anual da remuneração, ano a ano, considerado o mesmo percentual que, alfim, é ditado pela inflação do período. Como então não se entender cabível a verba indenizatória, presente o que Celso Antônio Bandeira de Mello aponta como incúria e que se revela como verdadeira postura de força diante do prestador dos serviços? Do mesmo modo, apreciando especificamente a questão, Clèmerson Merlin Clève e Flávia Piovesan dizem, respectivamente:
Em qualquer hipótese, as omissões declaradas inconstitucionais concretizam uma verdadeira censura constitucional ao Poder omisso, com repercussões diversas, entre elas a responsabil ização civil do Estado quanto aos danos porventura ocorridos (A fiscalização abstrata da constitucionalidade no Direito brasileiro, 2000, p. 347)
Sob o prisma da ilicitude, a inconstitucionalidade será um pressuposto de responsabilidade civil a acrescer a outros, entre os quais um específico dever de atuação (ou de não-atuação) por parte do Estado. A par da responsabilidade por atos inconstitucionais, e mais ou menos conexa com ela, pode haver responsabilidade civil do Estado por omissões inconstitucionais, máxime por omissões legislativas (Proteção judicial contra omissões legislativas, 2003, p. 123)
Concluir não caber o acesso ao Judiciário para impor a responsabilidade própria a quem de direito é olvidar a garantia constitucional de acesso ao Judiciário para afastar lesão ou ameaça de lesão a direito. O círculo vicioso hoje notado nas três esferas – federal, estadual e municipal – não pode persistir. Chega à extravagância encaminhar-se, ante declaração de inconstitucionalidade por omissão, como aconteceu em decorrência do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.492, projeto de lei estipulando percentagem mínima de reajuste em flagrante desarmonia com a inflação do período, como o projeto do qual resultou a Lei nº 10.331/2001. Não é republicano. Não é o exemplo que o Estado deve dar aos cidadãos em geral – que, em última análise, há de ser o de respeito irrestrito à ordem jurídica.
6. CONCLUSÃO
Provejo o extraordinário para julgar procedente o pleito formulado, impondo ao Estado de São Paulo a obrigação de indenizar os autores em razão do descompasso entre os reajustes porventura implementados e a inflação dos períodos. Considerem para tanto o índice oficial referente à inflação de cada um dos períodos, presente o mês de janeiro de todo ano, e as parcelas satisfeitas, que, segundo o pedido, diz respeito aos vencimentos, férias e 13º salários. Observem a incidência de juros moratórios bem como da correção monetária, contados os primeiros a partir da data da citação – artigo 397, parágrafo único, do Código Civil. Imponho-lhe os ônus da sucumbência e as despesas processuais, fixando os honorários advocatícios, consoante disposto no artigo 20 do Código de Processo Civil, na base de dez por cento sobre o valor da condenação devidamente corrigido. Em cumprimento ao acórdão, apurem as quantias próprias, levando em conta as parcelas remuneratórias vencidas.
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